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A nova MP de preços de transferência e as regras de

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A nova MP de preços de transferência e as regras de "foreign tax credit" dos EUA

24/01/2023 / Publicações / POSTADO POR Conjur

É de conhecimento geral que, em dezembro de 2021, o Fisco norte-americano editou uma nova regulamentação do seu regime de "foreign tax credit" (T.D. 9959), que, a pretexto de regulamentar mudanças legislativas oriundas da reforma tributária de 2017 ("Tax Cuts and Jobs Act" — TCJA), efetuou alterações na definição de imposto de renda pago no exterior e introduziu um novo critério de atribuição, que pretende vincular o imposto de renda pago no exterior à jurisdição estrangeira a partir de parâmetros tradicionais de alocação do poder de tributar entre os Estados.

Assim, após a nova regulamentação do Tesouro norte-americano, para que o imposto da renda pago em um Estado estrangeiro autorize a apropriação de "tax credit" pelo contribuinte nos Estados Unidos, essa exação deve ser limitada à receita bruta, incidir sobre a renda líquida (i.e., permitir a recuperação de custos e despesas relacionados à obtenção da renda), ser devida sobre renda realizada e ser atribuível ao Estado estrangeiro de acordo com os "princípios estabelecidos de tributação internacional", que abrangem: 1) regras de preços de transferência baseadas no padrão "arm's length"; 2) regras de determinação da fonte dos rendimentos razoavelmente similares às existentes nos Estados Unidos; e 3) alocação de renda ativa de acordo com a existência de uma presença tributável (estabelecimento permanente).

Como não poderia deixar de ser, essa nova regulamentação gerou impactos significativos para multinacionais norte-americanas que exercem atividades, direta ou indiretamente, em jurisdições que não possuem acordos de bitributação celebrados com os Estados Unidos, como é o caso do Brasil, por conta do elevado risco de dupla tributação da renda e das consequências econômicas nocivas dela decorrentes (i.e., desestimular a livre circulação de capitais, inibir operações transfronteiriças, dificultar o desenvolvimento de atividades empresariais, comprometer a expansão internacional de empresas, afetar a neutralidade das decisões de investimento, desencorajar repatriações, distorcer os fluxos internacionais de pagamento, entre outras).

No final de 2022, o Tesouro norte-americano propôs uma nova regulamentação (REG-112096-22) para reinterpretar e flexibilizar determinados requisitos previstos para o aproveitamento de "tax credit" nos Estados Unidos, com especial destaque para uma salvaguarda ("single-country exception") em relação ao IRRF incidente sobre royalties decorrentes do uso de propriedade intelectual exclusivamente no território do Estado da fonte. A nova regulamentação não alterou, porém, a exigência de atribuição da renda ao Estado estrangeiro em conformidade com o padrão "arm's length", o que torna esse tema relevante no contexto da recente Medida Provisória nº 1.152, de 28/12/2022, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro regras de preços de transferência alinhadas ao padrão "arm's length".

De fato, ainda que o processo de acessão do Brasil à condição de país-membro da OCDE não faça parte da agenda do novo Governo do presidente eleito, a Medida Provisória nº 1.152 permanece como um fator relevante para 1) a inserção do Brasil nas cadeias internacionais de criação de valor, que seria facilitada pela convergência das regras de preços de transferência ao padrão internacional, bem como para 2) atenuar parte das dificuldades criadas pelas novas regras de "foreign tax credit" editadas pelos Estados Unidos.

Sob esse enfoque, a Medida Provisória nº 1.152, ao adotar integralmente o padrão "arm's length" para controlar as relações comerciais e financeiras realizadas entre partes vinculadas, passou a observar um dos critérios de atribuição previstos na regulamentação norte-americana, mitigando, assim, parte dos empecilhos ao aproveitamento, nos Estados Unidos, de crédito em relação ao IRPJ e à CSLL pagos no Brasil por sociedades investidas de multinacionais norte-americanas.

Além disso, ao incluir os royalties e a remuneração por assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante no âmbito dos preços de transferência, a Medida Provisória nº 1.152 revogou o anacrônico limite máximo de 5% anteriormente previsto para a dedução de tais despesas, amoldando-se, em certa medida, ao critério de "cost recovery" previsto nas regras norte-americanas de "foreign tax credit".

As limitações que permaneceram na Medida Provisória nº 1.152, como 1) a indedutibilidade dos royalties e da remuneração assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante pagos a benefícios em jurisdição com tributação favorecida ou regimes fiscais privilegiados, e 2) a introdução de regras específicas para evitar estruturas de "dupla dedução" ou "dedução e não inclusão", são regras antielisivas mais direcionadas e justificáveis no contexto atual de combate à competição fiscal internacional e ao planejamento tributário agressivo.

Nessa altura da exposição, um leitor mais atento aos debates internacionais poderia pensar que a celebração de um acordo de bitributação com os Estados Unidos seria um caminho mais cômodo do que alterar todo o regime brasileiro de preços de transferência, mediante a introdução de normas jurídicas mais abertas e subjetivas, que podem gerar conflitos de interpretação entre o Fisco e os contribuintes. Essa alternativa poderia surgir em razão da "treaty coordination rule" contida na regulamentação, segundo a qual os tributos abrangidos por um acordo de bitributação celebrado pelos Estados Unidos são considerados impostos incidentes sobre a renda, fazendo jus, portanto, ao aproveitamento de "tax credit" naquele país.

Há, porém, dois entraves a essa possível solução. O primeiro é que há diversos tratados internacionais engavetados no Senado norte-americano, pendentes de apreciação e sem expectativa de aprovação ou rejeição, como o acordo de bitributação celebrado com o Chile há mais de dez anos. A mera assinatura de um tratado internacional, sem aprovação pelo Congresso, pode não ser suficiente para permitir a aplicação da "treaty coordination rule". O segundo é que o artigo 9 1) dos acordos de bitributação, incluindo aqueles celebrados pelos Estados Unidos, exige que os ajustes de preços de transferência nas operações comerciais e financeiras entre empresas associadas observem o padrão "arm's length". Logo, a celebração de um acordo de bitributação não descartaria a possibilidade de recusa do "tax credit" pelo Fisco norte-americano, uma vez que o uso de margens predeterminadas pode conduzir a ajustes fiscais incompatíveis com o intervalo "arm's length".

Em tese, seria possível argumentar que o texto da regulamentação norte-americana foi editado com foco nas questões geradas pela economia digital, visando limitar o "tax credit" em relação a impostos cobrados sobre renda realocada para outras jurisdições não com base no padrão "arm's length", mas, sim, na localização de clientes, usuários ou qualquer outro critério análogo, tal como proposto pela OCDE no Pillar 1. De qualquer forma, é inegável que o requisito da atribuição permite uma leitura mais estrita, alcançando as regras brasileiras de preços de transferência.

Diante desse cenário, ainda que a Medida Provisória nº 1.152 não solucione todos os empecilhos ao aproveitamento de "tax credit" nos Estados Unidos em relação aos impostos pagos no Brasil, é inegável que esse aspecto deve ser considerado pelo Congresso Nacional e pela sociedade civil nos debates a respeito do novo regime de preços de transferência, em conjunto com a importância da adoção de critérios relativamente uniformes de alocação de lucros ou prejuízos gerados por grupos multinacionais, para uma maior inserção do Brasil nas cadeias internacionais de criação de valor, não apenas na condição de produtor ou de mercado consumidor.

*O texto reflete a opinião dos autores e não representa o LexUniversal.

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